Gisela Casimiro (Guiné-Bissau, 1984) é escritora, artista, performer e tradutora. É autora de «Erosão», «Giz», «Estendais», e do texto e dramaturgia de «Casa com Árvores Dentro». Actuou em espectáculos de Ana Borralho & João Galante, Romeo Castellucci, Raquel André e Cristina Carvalhal. Participou de exposições nas Galerias Municipais do Porto e Lisboa. Integra a Colecção António Cachola. Com Teresa Coutinho, coordena o Clube de Leitura do Cinema Batalha. É membro da UNA – União Negra das Artes. Nuno Miguel Guedes esteve à conversa com a poeta.
- Eis a pergunta clássica: que utilidade, se alguma, tem a poesia?
Como disse Manoel de Barros, «o que é bom para lixo é bom para poesia». A poesia pode ser tão útil ou inúti quanto quisermos, precisarmos e decidirmos. Sou uma contadora de histórias, por isso uso todas as ferramentas à minha disposição para o efeito. Como também sou artista e activista, a poesia serve para chamar a atenção sobre questões fracturantes da nossa sociedade, seja nas ruas, nos livros, ou em leituras em voz alta. A poesia é uma acção criativa e combativa, que pode ressoar durante muito tempo em alguém, mas cada um tem de agir por si e a seu tempo, e se isso lhe fizer sentido e estiver alinhado com quem é. Algumas pessoas têm maior facilidade e privilégio em escrever sem esse peso da responsabilidade social. Independentemente disso, a arte por si só não muda o mundo.
- Existem temas recorrentes na sua poesia? Quais? Porquê?
Sim. O corpo, o trauma, a violência, a condição da mulher, a identidade, o racismo, o amor, o quotidiano. A natureza é outro tema importante. Escrevo sobre as coisas que me deixam maravilhada, que me comovem e aterrorizam, aquelas em que mais penso e me afectam, e para as quais devo alertar e estar alerta. Outras vezes estou apenas a mapear a minha existência. O que não está resolvido ainda precisa ser dito mas, citando Tolentino «Também eu me recuso a dizer apenas o que pode ser dito».
- A que outras vozes – leia-se outros poetas – recorre mais?
Tenho vindo a escurecer a minha leitura, pelo que cada vez mais leio poesia de autores racializados, sobretudo os que não são só poetas, como Conceição Evaristo, Alice Walker, Audre Lorde, Nikki Giovanni, Maya Angelou, Ana Paula Tavares, Ellen Lima Wassu, Nicole Diaz. Também tenho lido mais poesia árabe, síria e de tantos poetas brasileiros, angolanos, guineenses, cabo-verdianos quantos consigo encontrar. André Tecedeiro, Daniel Faria e José Tolentino Mendonça, Miriam Reyes, Judite Canha Fernandes são poetas que me marcaram e marcam ainda muito. Continuo a voltar a Bashô ou Leminkski, mas também vou descobrindo poesia queer e trans pela Pântano Books e belas traduções islandesas, suíças, norte-americanas e outras do catálogo da Contracapa. As editoras e livrarias independentes privilegiam uma abordagem interseccional da literatura e do pensamento, investir nelas é investir em representatividade.
- O que é isso de ser poeta? Algo misterioso e distante, apenas um ofício… O que é?
Não há nada de glamouroso na poesia, é uma coisa tão celestial quanto crua e suja. Nada é mais misterioso do que uma pessoa, seja aos seus próprios olhos ou de outrem. Mesmo assim, diferentes mistérios nos assolam, diferentes curiosidades nos assolam. A poesia também é um ofício para mim. Sou paga para escrever poesia, mas escrevo poesia ininterruptamente, seja paga ou não. Aliás, escrevia poesia muito antes de ser paga por ela, e sem saber se alguma vez seria ou não. Ser poeta é estar presente na vida, todos os dias. O mistério maior é sempre saber como posso observar, escutar, aprender, ler, escrever mais e melhor, chegar às pessoas, sentir e, quem sabe, conectar com e fazer sentir a alguém além de mim. Tudo pode ser poesia, qualquer pessoa ou evento pode inspirar um poema, e é por isso que continuo a acreditar na beleza, mesmo na mais grotesca.
- A sua participação na Secreta Vida das Palavras traz alguma mudança na forma como escreve? De que forma?
Não. Quando muito, reforça formas de escrita com as quais me identifico desde há muito: partir de uma fotografia para chegar à escrita. Como sou artista e fotografo bastante, e considerando que a música é fundamental para mim, é uma feliz coincidência poder criar de forma colaborativa. É o segundo projecto em que escrevo sabendo que o resultado final não se fica pelo poema, que existia antes de mim numa fotografia, tirada por outra pessoa, e que alguém irá pegar nas minhas palavras e acrescentar ainda mais camadas. Saber que este processo poderia ter tantos resultados quanto pessoas envolvidas, é ainda mais gratificante. As coisas não se esgotarem em nós mesmos e permitirmo-nos ser expandidos pelo toque de outras pessoas, e vice-versa, além do que cada pessoa que lê ou assiste traz para a partilha.
Fotografia de Filipe Ferreira