Ana Deus começou o seu percurso musical em 87 no grupo pop Ban onde editou três discos de originais. Em 93 inicia com a escritora Regina Guimarães e o músico Alexandre Soares o grupo Três Tristes Tigres, tendo já editado quatro discos. Faz da palavra a sua força motriz: Fernando Pessoa, Camilo Pessanha, Bocage, Camões, Natália Correia, David Mourão Ferreira ou Regina Guimarães são alguns dos autores musicados e cantados por si, a solo ou nos seus projetos Osso vaidoso (com Alexandre Soares), Bruta (com Nicolas Tricot) e Ruído Vário (com Luca Argel). Em vésperas de trazer um espectáculo a solo ao MAP, o jornalista Nuno Miguel Guedes esteve à conversa com a cantora para levantar ao véu ao que irá apresentar no dia 8 de Outubro.
- Parece que das duas uma: ou a palavra te persegue ou tu persegues a palavra. Se calhar, ambas. Desde os remotos anos 80 até agora, com as sessões de poesia Palavras À Mesa nos Maus Hábitos: o gosto pela palavra uniu todos estes anos ?
As palavras são ferramentas de compreensão e comunicação, no entanto a palavra como expressão mais criativa e sobre a forma de poesia foi sendo mais querida e entendida por mim com o andar da carruagem, com muitas leituras entrelaçadas com anos de vida vivida. Ter tido a Regina Guimarães a escrever para mim também foi grande formação. Pensar enquanto se canta, e de cada vez ser diferente, significados e imagens em “hipertexto”. Com as sessões regulares nos Maus Hábitos criei um bom hábito, o de procurar autores e poemas que me parecessem ficar bem entoados, cantados ou apenas ditos. Também serviu para experimentar o primeiro estádio duma canção, o ritmo, o dar a ver sentidos. Para ajudar à “festa” fui criando para essas apresentações vídeos com bases sonoras, rítmicas ou texturas, que me servissem de “alavanca”.
- Recuemos, então, e sem nostalgias. O que estavas tu a fazer no Aniki Bobó na noite em que o João Loureiro te viu e convidou para os Ban ?
Estava a fazer um encadeamento acapella de músicas sobre o mar, durante a performance duma alemã (Mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau), que estava fascinada com a versatilidade da nossa cozinha. No entanto ela apenas fritava lombinhos de bacalhau que oferecia ao público. O cheiro era intenso e eu afadistei um pouco. Podemos dizer que o João talvez tenha sido pescado, ou conquistado pelo estômago…
- Depois veio algo que se juntou a esses anos de desbunda (palavras tuas): a visibilidade dada pela banda e pelo seu relativo sucesso. Como é que lidaste com tudo isso ?
Ouvir as músicas na rádio sentir o agrado do público e ser bem tratada em bares e discotecas, beber de borla e tal era fixe, mas ouvir as bocas dos basbaques e deixar de ser anónima na rua confesso que não gostei nada. Acho que me tornei mais reservada, durante esses finais da década de 80. Mas tudo passa depressa, e cada vez mais. Já ninguém se impressiona com essas coisas, os 15 minutos de fama já passaram a 5, a 2, a um ápice.
- Já com o projeto Ban a dizer-te pouco (opinião minha) tiveste de cumprir os olímpicos contratos da época que as editoras faziam: mais três discos. O aparecimento em 1992 dos Três Tristes Tigres foi uma libertação artística ?
Foi o princípio da procura, da voz, dos assuntos. Gostei muito de ter participado no Surrealizar, assim meio à queima roupa, improvisei, com muita alegria e entrega, grande parte das vozes no estúdio durante as gravações. Mas, como é natural, fui-me sentindo, com o rolar das coisas, como peixe fora do seu lago. Eram vidas muito diferentes da minha, assim como as influências musicais ou os temas das letras.
- Lidar com as palavras de uma poeta como a Regina Guimarães (com quem já trabalhavas desde os anos 80) e a vontade incansável de experimentação do Alexandre Soares, que apareceu já numa fase mais tardia: como foi ?
A vontade de trabalhar com o Alexandre já existia no início, e só não o fizemos logo no primeiro disco por indisponibilidade dele, tendo apenas metido guitarras em um ou dois temas. Com a Regina foi a procura dos temas, cantar sobre o quê. Eu não tinha ainda uma ideia precisa, nem pouco mais ou menos, sobre o que queria fazer. Tínhamos a cantora Brigitte Fontaine como uma das referências para ambas e foi por aí que começámos, pela tradução/adaptação de duas das suas canções. Depois seguiram-se, e já que estávamos entre mulheres com a entrada da Paula Sousa para as teclas, temas de confronto amor/ódio com o masculino, ou melhor dizendo de libertação, sendo o “Descapotável” e o “Mundo a meus pés” bons exemplos disso.
- Pelo que sei, quando a banda começou a ganhar palco e força, tu, ao contrário, começaste a duvidar de ti própria… E paraste. O que fizeste nessa altura ?
Estava com três filhos, dois deles gémeos, pequenos, e precisava de tempo para a família. A balança pesou mais para um lado e achava na altura, sinceramente, que a banda ficaria bem sem mim, sob outro nome obviamente. Comecei então a fazer, com menos pressão, leituras ou projetos pequenos ligados à poesia. Aproveitei para filmar e gravar os meus filhos e construí um pequeno espetáculo chamado KitchNet, com sons e imagens domésticas. Construí também um espetáculo chamado Sono a partir da poesia de Ernesto de Melo e Castro, tudo sempre com a colaboração de outros músicos ou performers. Também foi durante este interregno das bandas que gravei uma versão da “Trova do vento que passa” com os Dead Combo. Foi uma boa “paragem” em que não parei. Abrandei, ganhei confiança e percebi (ou construí) o que seria melhor para mim, para as minhas características de voz e de personalidade. Vejo agora ainda melhor que fez todo o sentido, tinha entrado de chofre para bandas sem tempo para criar chão, sozinha ou com as minhas escolhas mais pessoais.
- Em 2017 os Três Tristes Tigres regressam com Mínima Luz. Entretanto existe o Osso Vaidoso, as tuas sessões nos Maus Hábitos… Agora, em que ponto estás?
O “Mínima luz” saiu em 2020 em plena pandemia. Entretanto eu já tinha feito dois discos sob o nome Bruta (projeto de poesia de autores outsiders com o músico Nicolas Tricot) em 2015 e em 2018. Em 2018 também editei com o cantor e músico Luca Argel o livro-cd Ruído vário com canções a partir da poesia de Fernando Pessoa e Álvaro de Campos. As sessões nos Maus Hábitos aconteceram durante aquele estado intermédio em que só aconteciam espetáculos se o público estivesse sentado e à cautela bem afastado entre si. Essas sessões deixaram rasto, fiquei com grande e variado repertório de poemas, beats e vídeos que continuei a apresentar já fora de portas. Quanto ao Osso, fizemos em trio (com a harpista Eleonor Picas) espetáculos sobre poesia transmontana ao qual mais tarde incluímos autores minhotos, como Sebastião Alba. Mais recentemente criei com a Marta Abreu (na eletrónica) um espetáculo de nome “Eu fui silêncio”, só com autoras mulheres, censuradas ou mal tratadas à época.
- O que poderemos esperar do teu concerto aqui no MAP ?
No MAP apresentarei uma seleção a partir de todos, ou quase todos, esses projetos. Os meus poemas favoritos naturalmente acapella, com beats, ou com música e acompanhados de vídeo. Autores como Alberto Pimenta, Augusto dos Anjos, Ernesto de Melo e Castro, Maria Teresa Horta, Natália Correia, Judith Teixeira, Regina Guimarães, Camilo Pessanha constarão certamente. Outros os seguirão, ainda estou escolhendo.