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Performance // Um Rei à Escuta, com curadoria de Raquel Castro
06/05/2022 | 18:00 - 19:00
Como indica o próprio título, “Um Rei à Escuta”, de Italo Calvino, é um texto povoado de sons, que são descritos ao longo da narrativa sobre os condicionalismos de ser rei, sempre com um humor acutilante, e interiorizados na própria escrita por uma pontuação em que abundam os dois pontos e o ponto e vírgula, cada frase e cada parágrafo determinando os ritmos da leitura. Calvino identifica o ruído de um palácio real com a condição monárquica e estabelece conexões entre a audição do Rei com o tempo, um tempo que é suposto ser regido por si mesmo e não pelas leis da física, não existindo sem a sua vigilância e a sua vontade: “Você escuta o tempo que corre: um zumbido semelhante ao vento; o vento sopra nos corredores do palácio ou no fundo de seu ouvido.”
Como se vai lendo no conto: “Os reis não têm relógio: supõe-se que sejam eles a governar o fluxo do tempo; a submissão às regras de um engenho mecânico seria incompatível com a majestade real. A extensão uniforme dos minutos ameaça sepultá-lo como uma lenta avalanche de areia: mas você sabe como escapar. Basta estender o ouvido e aprender a reconhecer os ruídos do palácio, que mudam de hora em hora (…) O palácio é um relógio: suas cifras sonoras seguem o curso do sol (…) Se os ruídos se repetem na ordem habitual, com os devidos intervalos, pode ficar tranquilo, o seu reino não corre perigo (…) Mergulhado no trono, você põe a mão em concha no ouvido, afasta os drapeados do baldaquim para que não amorteçam nenhum sussurro, nenhum eco. Os dias são para você uma sucessão de sons, ora nítidos ora quase imperceptíveis; já aprendeu a distingui-los, a avaliar sua proveniência e a distância, conhece sua sequência, sabe quanto duram as pausas, cada ribombo, rangido ou tilintar que está a ponto de atingir o seu tímpano já é esperado, antecipado na imaginação, se demora a ser produzido provoca impaciência. A sua angústia não acaba até que o fio do ouvido não seja recomposto onde parecia abrir-se uma lacuna. (…) O palácio é todo volutas, todo lobos, é um grande ouvido em que anatomia e arquitetura trocam de nomes e de funções: pavilhões, trompas, tímpanos, espirais, labirintos; você fica achatado no fundo, na região mais interna do palácio-ouvido, do seu ouvido; o palácio é o ouvido do rei.”
É este tempo-palácio sonoro, este ouvido real, que Maria do Mar e Maria Radich pretendem reproduzir numa performance em que vozes, violino, electrónica, o movimento e o silêncio nos entregam à musicalidade própria de uma existência em reclusão e em paranóia (tão presente também nos nossos tempos pandémicos). Uma musicalidade de lobo, baseada nos ribombos, rangidos e tilintares de que o texto nos fala e indicam que tudo vai bem e que a rotina da governação não foi ainda perturbada pela ação conspirativa dos espiões. Uma performance feita de pequenos gestos, sussurros, inquietações que se vão somando, ilustrando o estado de espírito da personagem desta história, que também nos remete para as nossas “democracias” contemporâneas. Apoderando-se do registo irónico e sarcástico de Calvino, numa crítica ao poder que serve para desmistificar todos os poderes políticos. Sejam bem-vindos à escuta dos sons deste palácio dos dias de hoje.
Maria Do Mar
Maria Do Mar, violinista natural de Lisboa, tem um trajeto vincado na música clássica e ensino, embora tenha desde sempre colaborado com artistas de outras áreas musicais. Desde 2012, no seguimento da sua participação no Atelier de Improvisação e Direção de Ensemble em tempo-real (Conduction) dirigido por Butch Morris, começou a explorar a improvisação livre e outras linguagens no âmbito da música nova, tendo formado um duo de violino e baixo eléctrico, com o baixista e compositor Ricardo A. Freitas. Tem vindo a desenvolver trabalho de improvisação com vários músicos, apresentando-se em concertos, ciclos e festivais, com nomes como Carlos “Zingaro”, Marcelo dos Reis, Guillaume Aknine, Ricardo Ribeiro, Helena Espvall, Luís Vicente, Miguel Mira, Paulo Chagas, João Pedro Viegas, Joana Guerra, Ricardo Jacinto, Christophe Berthet, Maria Radich. No âmbito do Moving Theater participou como convidada no workshop de Suzuki/Viewpoints, de Lowri Jenkins e Joana Pupo. Busca assim, um universo musical mais amplo e o desenvolvimento de uma linguagem mais pessoal, com fronteiras musicais esbatidas onde se abrem possibilidades transversais e sem limites criativos.
Maria Radich
Maria Radich é uma cantora, coreógrafa e bailarina votada à transdisciplinaridade, que vem actuando na área da música improvisada, com actividade em simultâneo na dança e no teatro, como coreógrafa dos seus próprios espectáculos ou trabalhando com outros criadores. Com formação em performance, dança e coreografia, gradualmente começou a explorar as intersecções férteis entre dança, música e teatro. Frequentou workshops de música com Nuno Rebelo, Carlos Zíngaro, José Menezes e Paulo Curado, aulas de canto com Cristina de Castro (2004) e Barbara do Canto Lagido (2006) e workshops de voz com especialistas como Ute Wassermann, Inês Nogueira, Luís Castanheira, Margarida Mestre e Sonia Gómez.